Acessibilidade / Reportar erro

Dos aldeamentos ao horto botânico: a apropriação de plantas de uso indígena na capitania de Guayases, 1772-1806

Resumo

O artigo pretende contribuir com a história das ciências, a história indígena e a história da América portuguesa. Parte-se dos pressupostos metodológicos de Dominique Pestre e da historiografia sobre a América portuguesa para interrogar a existência de uma rede de aldeamentos indígenas, a atuação de funcionários com saberes naturalistas, o envio de espécies botânicas para análise em Portugal e, por fim, a fundação de um horto botânico na capitania de Guayases (Goiás) entre 1772 e 1806. Apresenta-se a contribuição indígena na construção dos conhecimentos da história natural e discutem-se as influências de concepções da Ilustração na reforma do sistema colonial português na capitania a partir de documentação administrativa portuguesa, cartas e do estudo da aplicação de leis e instruções.

história indígena; América portuguesa; capitania de Goiás; drogas do sertão; história natural

Abstract

The article intends to contribute to the history of science, indigenous history and the history of Portuguese America. We begin with the methodological assumptions of Dominique Pestre and the historiography on Portuguese America to investigate a network of indigenous settlements, the work of civil servants with naturalist knowledge, the shipment of botanical species for analysis in Portugal and, finally, the foundation of a botanical garden in the captaincy of Guayases (Goiás) from 1772 to 1806. We describe the indigenous contribution to the construction of natural history knowledge, and discuss the influence of Enlightenment concepts on the reform of the Portuguese colonial system in the captaincy based on Portuguese administrative documentation, letters and study of the application of laws and instructions.

indigenous history; Portuguese America; captaincy of Goiás; drugs from the sertão; natural history

Este artigo investiga a presença de práticas científicas e governativas portuguesas relacionadas a indígenas na capitania de Guayases que resultaram na apropriação e no envio de plantas nativas de uso indígena para fins alimentares, medicinais, de cordoaria e tintura para Portugal. Foi colocada em prática pelos governadores uma política colonial embasada em leis e instruções de caráter pragmático, que englobavam indígenas e recursos naturais em um mesmo plano de ocupação e exploração das terras dos sertões. Como parte dessa política foram fundados jardins botânicos coloniais nas possessões portuguesas, entre os quais é discutido neste artigo o construído na capital Vila Boa de Guayases. Analisa-se esse processo no que diz respeito à existência de práticas da história natural na capitania, à presença indígena na constituição do conhecimento científico e à história da ciência a partir de documentos históricos pouco conhecidos pela historiografia de Goiás, da ciência e indígena. Inicia-se a discussão com uma desconstrução preliminar do que é historicamente tratado como ciência, para em seguida abordar a especificidade da dita capitania.

A compreensão hegemônica da ciência é a de uma área do conhecimento neutra, imparcial e racional, que independe dos contextos de produção e que busca a verdade e o progresso humano. Nessa compreensão, a ciência é percebida como investigadora do real, e – como a realidade supostamente é única – seus pressupostos e conclusões são universais, aplicáveis em qualquer lugar (Pereira, 2013PEREIRA, Rodrigo Osório. O império botânico: as políticas portuguesas para a flora da Bahia atlântica colonial (1768-1808). Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2013.). Essa compreensão é posta em debate por historiadores da história da ciência em meados do século XX, ao investigarem a ciência no mundo colonial. Inicialmente, observavam o ultramarino buscando a extensão da história social e intelectual europeia, sobretudo a presença de ideais, intelectuais e movimentos sociais. As pesquisas focavam o modelo de verdade e racionalidade iluminista e a sociedade científica, cabendo ao conhecimento étnico, mestiço, popular e não ocidental compreensões que afirmavam deficit de racionalidade. As mudanças na área passaram a ocorrer quando, por influência da historiografia inglesa, a história da ciência voltou-se também para o passado das populações subalternizadas e invisibilizadas (Pestre, 1996PESTRE, Dominique. Por uma nova história social e cultural das ciências: novas definições, novos objetos, novas abordagens. Cadernos IG-Unicamp, v.6, n.1, p.3-56, 1996.).

Dominique Pestre indica como aporte metodológico partir do pressuposto de que a relação social é desigual e assimétrica, e que assim deve ser a análise dos sujeitos e das práticas científicas. Lembra ainda a importância da contextualização, que permite ir além da estreita análise das evidências de descobertas científicas, ou da recorrente conclusão de que certas populações possuiriam “impedimento patológico: social, psicológico ou epistemológico” (Pestre, 1996, p.7), que inviabilizariam a construção racional coletiva sobre o mundo natural. Somada à contextualização, há o estudo dos sujeitos sociais, suas experiências e as posições distintas que ocupam no processo histórico da constituição do saber científico, o que torna possível perceber a contribuição multicultural que a constituiu. As contribuições e os benefícios da prática científica devem ser compreendidos, mas também é central que seus efeitos e consequências perversas sejam analisados e narrados (Santos, Meneses, Nunes, 2005).

Deve-se, portanto, deslocar a compreensão do que é ciência para além do “exclusivismo epistemológico”, que nela teria o único conhecimento válido, racionalmente capaz de interpretar e agir sobre o mundo de maneira eficiente. Compreensão que não só desqualifica outras formas de compreensão do mundo, mas também desprestigia os contextos e processos históricos de constituição do conhecimento – relegando ao esquecimento as contribuições de outras vertentes de pensamento, marginalizando-as e desacreditando-as – e que desconsidera os processos históricos de apropriação dos conhecimentos étnicos, populares e de grupos subalternizados realizados nas práticas científicas (Santos, Meneses, Nunes, 2005).

Palmira Fontes da Costa e Henrique Leitão (2008), ao realizarem uma leitura da historiografia sobre ciência no império português, destacam três diferentes abordagens: a primeira voltada para as ciências e tecnologias das navegações, a segunda relativa à contribuição jesuíta na matemática e nas ciências naturais, e por fim uma terceira em torno das mudanças ocasionadas na ciência portuguesa com a introdução de pressupostos iluministas nas práticas governativas, na educação e na ciência a partir de meados dos Setecentos. Identificaram que a historiografia a princípio privilegiou a análise de crônicas, literaturas de viagem e cartas, na busca de compreender a presença de práticas científicas nos esforços de conquista e catequização, nos mecanismos de troca de informações e práticas da medicina e da história natural entre os reinos europeus e, finalmente, a constituição de hospitais da caridade em todo o reino.

Destacam ainda que, nas últimas décadas do século XX, os historiadores da ciência portuguesa centraram esforços no entendimento das expedições científicas ultramarinas e dos planos da Coroa em inventariar os recursos naturais, as populações e as possibilidades comerciais nas possessões ultramarinas da Ásia, da África e da América. Chamam atenção para a presença de pesquisas sobre as reformas educacionais e econômicas ocorridas a partir de meados do século XVIII, a influência do naturalista Domenico Vandelli nas expedições científicas e na constituição do museu e jardim botânico da Ajuda, a existência da Academia de Ciências de Lisboa e outras academias nas Américas, a constituição de uma rede de informação e o envio de espécimes para análise em Portugal (Costa, Leitão, 2008).

Os estudos de José Aguiar (2011)AGUIAR, José Otávio. A botânica como missão pedagógica: Manuel Arruda da Câmara e a peculiaridade de suas interpretações sobre as espécies brasileiras (1752-1811). Clio, v.29, n.1, p.180-205, 2011. apontam que a Coroa portuguesa, a partir dos reinados de José I (1750-1777) e Maria I (1777-1815), inseriu o conhecimento científico nas práticas administrativas e nos meios de submissão e controle do território e dos povos conquistados. Administradores reformistas ilustrados, como os secretários de governo marquês de Pombal (1750-1777), Martinho de Mello e Castro (1770-1795) e dom Rodrigo de Souza Coutinho (1795-1801), promoveram pesquisa mineralógica, botânica e zoológica nas terras americanas. Lorelai Kury (2004)KURY, Lorelay. Homens de ciência no Brasil: impérios coloniais e circulação de informações (1780-1810). História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v.11, supl.1, p.109-129, 2004. demonstra que vice-reis e governadores se embasavam em leitura dos autores iluministas franceses e ingleses, dispensando seu caráter político libertário e concentrando-se no pensamento prático. Junto aos governadores e oficiais militares, os funcionários naturalistas foram centrais na disseminação das práticas científicas na administração portuguesa, pois alguns participavam do circuito científico europeu, escreviam em latim e adotavam o sistema de Linneu, e eram, e em sua maioria, formados em Coimbra ou na França, muitos haviam nascido no Brasil, alguns eram filiados à Academia de Ciências de Lisboa, e alguns participaram de viagens exploratórias ou filosóficas (Kury, 2004KURY, Lorelay. Homens de ciência no Brasil: impérios coloniais e circulação de informações (1780-1810). História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v.11, supl.1, p.109-129, 2004.).

A reforma posta em prática pela Coroa consistia em uma reordenação da ocupação territorial, a partir da administração ilustrada, com o propósito de obter o controle geográfico, político, comercial e militar dos recursos demográficos, com projetos agrícolas e comerciais e organização militar, baseados na produção e controle da informação. Com isso, desejava-se tornar mais eficaz a cobrança de taxas e impostos e dominar de maneira mais racional e rentável as terras, os moradores coloniais e povos indígenas conquistados (Domingues, 2012DOMINGUES, Angela. Monarcas, ministros e cientistas: mecanismos de poder, governação e informação no Brasil Colonial. Lisboa: Cham, 2012.). Houve também tentativa de laicização e centralização das práticas administrativas, reconhecimento e inventário dos recursos naturais, “urbanização, a navegação e a incorporação das populações indígenas na sociedade colonial como mão de obra e reserva militar” (Sanjad, 2012SANJAD, Nelson. Ciência e poder imperial no Grão-Pará: da expansão à desconstrução. In: Kury, Lorelai; Gesteira, Heloisa (org.). Ensaios de história das ciências no Brasil. Rio de Janeiro: Eduerj, 2012. p.225-238., p.225).

A proposta deste texto é deslocar a análise para a especificidade da capitania de Guayases (Goiás), discutindo a participação indígena na constituição da ciência portuguesa moderna. Na capitania foi fundada uma rede de aldeamentos portugueses para indígenas em territórios indígenas, áreas de interesse da Coroa portuguesa em virtude da presença de ouro. Os aldeamentos foram estrategicamente distribuídos pelo território para defender arraiais de ouro, fazendas, caminhos e rios de ataques feitos por indígenas e quilombolas, e controlar o contrabando de ouro. Os aldeamentos foram também pensados para a conversão dos indígenas ao catolicismo, formação de artesãos em ofícios e constituição de reserva de mão de obra (Dias, 2017DIAS, Thiago C. O língua e as línguas: aldeamentos e mestiçagens entre manejos de mundo indígenas em Goiás. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2017.). A hipótese é de que a presença e variedade de populações indígenas nos aldeamentos, o emprego de funcionários, soldados oficiais e governadores com saberes naturalistas na capitania e a efetivação de leis e instruções com fins de reforma administrativa, científica e colonial constituíram um processo de mestiçagem entre conhecimentos e práticas científicas europeias e indígenas. Mestiçagem compreendida à semelhança da que menciona Serge Gruzinski (2001GRUZINSKI, Serge. O pensamento mestiço. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p.62), ou seja, misturas que ocorreram na América “entre seres humanos, imaginários e formas de vida, vindos da América, Europa, África e Ásia”.

Juciene Apolinário (2013)APOLINÁRIO, Juciene. Plantas nativas, indígenas coloniais: usos e apropriações da flora da América portuguesa. In: Kury, Lorelai (org.). Usos e circulação de plantas no Brasil: séculos XVI a XIX. Rio de Janeiro: Andrea Jakobsson, 2013. p.181-227. parte das trocas culturais, de conhecimentos e práticas sobre plantas entre portugueses e índios coloniais, destacando as relações interétnicas, a importância do pajé e dos anciões, classificando o conhecimento indígena, na esteira de Lévi-Strauss, como a “ciência do concreto”. Ela e Rodrigo Osório Pereira (2013)PEREIRA, Rodrigo Osório. O império botânico: as políticas portuguesas para a flora da Bahia atlântica colonial (1768-1808). Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2013. identificaram práticas científicas conduzidas em aldeamentos pelo capitão de infantaria Domingo Alves Branco Muniz Barreto na Bahia. Em obras dedicadas a outras capitanias (Dean, 1991DEAN, Warren. A botânica e a política imperial: a introdução e a domesticação de plantas no Brasil. Estudos Históricos, v.4, n.8, p.216- 228, 1991.; Domingues, 2012DOMINGUES, Angela. Monarcas, ministros e cientistas: mecanismos de poder, governação e informação no Brasil Colonial. Lisboa: Cham, 2012.; Pataca, 2016PATACA, Ermelinda Moutinho. Coleta, transporte e aclimatação de plantas no Império luso-brasileiro (1777-1822). Museologia e Interdisciplinaridade, v.9, n.5, p.88-108, 2016.; Marques, 2005MARQUES, Vera Regina B. Escola de homens de ciências: a Academia Científica do Rio de Janeiro, 1772-1779. Educar, v.21, n.25, p.39-57, 2005.; Raminelli, 2008RAMINELLI, Ronald. Viagens ultramarinas: monarcas, vassalos e governo a distância. São Paulo: Alameda, 2008., 2012RAMINELLI, Ronald. Ilustração e império colonial. História, v.31, n.2, p.36-67, 2012.; Sanjad, 2001SANJAD, Nelson Rodrigues. Nos Jardins de São José: uma história do Jardim Botânico do Grão Pará, 1796-1873. Dissertação (Mestrado em Geociências) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2001.; Sevcenko, jun.-ago. 1996; Varela, 2007VARELA, Alex. As viagens científicas realizadas pelo naturalista Martim Francisco Ribeiro de Andrada na capitania de São Paulo (1800-1805). Topoi, v.8, n.14, p.172-205, 2007.; Walker, 2009WALKER, Timothy. Acquisition and circulation of medical knowledge within the Early Modern Portuguese Colonial Empire. In: Bleichmar, Daniela et al. Science in the Spanish and Portuguese empires, 1500-1800. California: Stanford University Press, 2009.), nota-se que a apresentação da contribuição indígena na história das ciências, quando referida, é no sentido do uso da mão de obra e da procedência indígena das plantas remetidas, com menor destaque aos contextos e aos indivíduos indígenas envolvidos na prática científica.

A capitania de Guayases, os povos indígenas e a política colonial dos aldeamentos

Os indígenas eram a base do projeto colonial português para as terras do sertão, onde, sem os “gentios”, não era possível, nos primeiros séculos, cultivar a terra e produzir gêneros de primeira necessidade para a sobrevivência dos colonos, extrair riquezas e defendê-la de nações indígenas e europeias hostis (Perrone-Moisés, 1992PERRONE-MOISÉS, Beatriz. Índios livres e índios escravos: os princípios da legislação indigenista do período colonial (sécs. XVI a XVIII). In: Cunha, Manuela Carneiro da (org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p.115-132.). Entre 1591 e 1725, bandeiras e pombeiros vindos de São Vicente e Belém, somados a missões jesuíticas principalmente de Belém, adentraram as terras indígenas do vale dos rios Araguaia e Tocantins, no Centro-oeste do Brasil (Karasch, 1998KARASCH, Mary. Catequese e cativeiro: política indigenista em Goiás, 1780-1889. In: Cunha, Manuela Carneiro (org.). História dos índios do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p.397-412.). A partir de 1725, ano em que foram minerados mais de oito mil oitavas (cerca de 29kg) de ouro, a prática colonial de realizar incursões em terras indígenas para obter mão de obra, fosse a partir de alianças ou de guerra, mudou para a de ocupar as terras indígenas com arraiais de ouro (Taunay, 1923TAUNAY, Affonso de E. Um grande bandeirante: Bartholomeu Paes de Abreu (1674-1738). São Paulo: Oficinas do Diário Oficial, 1923.).

A descoberta do ouro levou a Coroa portuguesa a autorizar a ocupação de terras indígenas com a formação de arraiais e fazendas, além de caminhos trilhados por uma massa heterogênea de súditos que migravam, muitas vezes, em busca de “promessas de enriquecimento fácil, escapar da justiça ou de devedores” (Vidal, 2009VIDAL, Laurent. Sob a máscara do colonial: nascimento e ‘decadência’ de uma vila no Brasil moderno: Vila Boa de Goiás no século XVIII. História, v.28, n.1, p.243-288, 2009., p.249). Em 1726 foi fundado o primeiro povoamento, chamado Arraial de Sant’Ana, base para a fundação da Vila Boa de Guayases, em 1739, posteriormente elevada a capital com a fundação da capitania de Guayases, em 1749 (Lemes, 2012a).

A capitania, uma das maiores do Brasil, era organizada a partir de sua única vila, e seu concelho formado por dois juízes ordinários (segunda instância) e três vereadores e um procurador (Vidal, 2009VIDAL, Laurent. Sob a máscara do colonial: nascimento e ‘decadência’ de uma vila no Brasil moderno: Vila Boa de Goiás no século XVIII. História, v.28, n.1, p.243-288, 2009.). Mais de cinquenta arraiais foram fundados em Guayases no século XVIII, a maioria de curta duração (Boaventura, 2007BOAVENTURA, Deusa Maria. Urbanização em Goiás no século XVIII. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.), criados “a partir da instalação, na forma de um acampamento, de uma ‘tropa itinerante’ em torno da atividade de extração do ouro” (Vidal, 2009VIDAL, Laurent. Sob a máscara do colonial: nascimento e ‘decadência’ de uma vila no Brasil moderno: Vila Boa de Goiás no século XVIII. História, v.28, n.1, p.243-288, 2009., p.249-250). Os arraiais não eram uma unidade administrativa, pois não tinham nenhuma autonomia administrativa e a organização civil se dava a partir das irmandades religiosas e tropas de ordenanças formadas pelos chefes das famílias (Vidal, 2009VIDAL, Laurent. Sob a máscara do colonial: nascimento e ‘decadência’ de uma vila no Brasil moderno: Vila Boa de Goiás no século XVIII. História, v.28, n.1, p.243-288, 2009.).

No mapa na Figura 1 é possível visualizar, no centro, o território delimitado como capitania de Guayases no século XVIII. As áreas com hachuras correspondem à fronteira em litígio com outras capitanias. O mapa, construído a partir da leitura de documentos administrativos e mapas populacionais da década de 1780, indica a existência de cerca de 55 mil pessoas livres, forras e escravas.

Figura 1
: Mapa da América portuguesa (Rocha, Moraes, 2001, p.61)

A capitania era a segunda maior produtora de ouro do Brasil, atrás apenas de Minas Gerais. Sua produção de ouro denota a importância da capitania para a economia imperial. Segundo Moraes (2011)MORAES, Cristina de C.P. Em terra de cego, caolho tem vida de rei: as migrações no setecentos para o sertão dos Guayazes. Revista UFG, ano 13, n.10, p.68-92, 2011., entre 1726 e 1735, a produção de ouro representava em torno de 16% do total na América portuguesa. Entre 1736 e 1751, chega a 20%, observando-se progressivo decréscimo: 16% entre 1752 e 1778 e 14% entre 1799 e 1822.

As técnicas rudimentares de extração de ouro e a curta existência dos arraiais, contudo, faziam a produção depender da expansão territorial para áreas da América indígena. Para liberar novas terras, havia dois meios: o primeiro era a guerra, com o morticínio e a escravidão de indígenas, o segundo era a migração forçada ou negociada (aliança) de aldeias para aldeamentos portugueses.

O mapa, construído a partir de original elaborado pelo secretário de governo Ângelo dos Santos Cardoso em 1753CARDOSO, Ângelo dos Santos. Mapa geral da Capitania de Goiás. CARTm 008, D.867 (Arquivo Histórico Ultramarino, Lisboa). 1753. – recebeu modificações empreendidas a partir da leitura de documentos históricos e produções historiográficas, sem ter a pretensão de mostrar um instantâneo da ocupação de Guayases –, configura-se como um esboço do que poderíamos chamar de América portuguesa e América indígena, na percepção portuguesa. A área destacada em amarelo é a de domínio dos colonizadores e local de extração do ouro. Dois anos depois, Ângelo dos Santos Cardoso indicou que, num período de aproximadamente trinta anos, a área conquistada compreendia mais de trezentas léguas (cerca de 1.800km) de latitude e duzentas (1.200km) de longitude em linha reta (citado em Lemes, 2012b).

Os aldeamentos foram uma ferramenta importante nesse processo de ocupação. No mapa indica-se onde estavam as terras indígenas e quais povos as ocupavam. Ao norte estavam as terras indígenas dominadas por três diferentes povos da sociocultura Akwén (Akroâ, Xacriabá e Xavante); a noroeste havia os Iny (Karajá, Javaé e Xambioá); na divisa com a capitania de Cuiabá estavam os Boé (Bororo), que também ocupavam aldeamentos no caminho real que vinha da capitania de São Paulo; os Paraniá (Kayapó do Sul) estavam ao sul. Importante frisar que, como ordenava a lei, os aldeamentos foram fundados em terras indígenas, o mais perto possível de arraiais, fazendas, caminhos e da capital.

Houve três momentos na política de aldeamentos. O primeiro entre 1731-1751, quando ocorreu a fundação de quatro aldeamentos formados por Bororo para combater os Kayapó ao sul e três ao norte para aldear os Akroâ e os Xacriabá. Os aldeamentos tinham também a função de proteger os caminhos principais, como o que ligava a capitania de São Paulo à capital da capitania de Guayases, ou o que conectava a capital na direção oeste a Cuiabá, ou ainda um terceiro caminho que seguia na direção norte rumo a Bahia e Belém do Pará. No mapa é possível identificar, ainda, duas áreas de criação de gado na direção nordeste, ocupadas inicialmente nesse período por fazendeiros de gado provavelmente originários da região do rio São Francisco.

Um segundo momento na política de aldeamentos foi quando o governador João Manoel de Melo declarou “guerra justa” contra os Akroâ, os Xacriabá, os Xavante e os Kayapó em 1762 (Dias, 2017DIAS, Thiago C. O língua e as línguas: aldeamentos e mestiçagens entre manejos de mundo indígenas em Goiás. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2017.). A parte que interessa em nossa discussão é o terceiro momento, que se dá com a retomada da negociação de paz com os Akroâ e os Xacriabá feita pelo governador José de A.V. de Soveral e Carvalho (1772-1778), vulgo Mossâmedes, que aldeou os Xacriabá no recém-reestruturado aldeamento de Santa Anna do Rio das Velhas (1775-?) e os Akroâ no aldeamento de São José de Mossâmedes (1775-1832). Ambos os aldeamentos organizados para defesa contra os ataques dos Kayapó (Dias, 2017DIAS, Thiago C. O língua e as línguas: aldeamentos e mestiçagens entre manejos de mundo indígenas em Goiás. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2017.).

Fundou, na ilha do Bananal, o aldeamento de Nova Beira (1776-1781?) para os Karajá, Javaé e Xacriabá, os quais assinaram tratado de vassalagem e se tornaram aliados. É a partir da empreitada de Mossâmedes que se inaugura a passagem de uma política de extermínio para a de assimilação dos povos indígenas. Posteriormente, o governador Luis da Cunha de Meneses (1778-1783) ampliou o aldeamento de Mossâmedes e criou mais dois: um chamado Maria I (1781-1813) para os Kayapó, e outro Salinas (1781-?) constituído pelos Karajá e Javaé migrados do aldeamento de Nova Beira. O irmão e também governador Tristão da Cunha Meneses (1783-1800) criou o aldeamento do Carretão (1788-?) para receber os Xavante (Dias, 2017DIAS, Thiago C. O língua e as línguas: aldeamentos e mestiçagens entre manejos de mundo indígenas em Goiás. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2017.).

O aldeamento de São José de Mossâmedes foi suporte à expansão colonial, pois fornecia suprimentos e mão de obra e se interligava por via fluvial a outros quatro aldeamentos pombalinos; localizava-se a poucas léguas da Vila Boa de Guayases (Figura 2). A partir dele era possível chegar ao rio Araguaia e então até o Tocantins, com destino a Belém do Pará. Batizado em honra a seu idealizador, Mossâmedes, foi concebido para assimilar os indígenas a partir do trabalho. No primeiro ano do aldeamento, ele afirmou “parecer indispensável na vizinhança desta Vila, fazer um estabelecimento que sirva de modelo a todos, e lhes incitasse a indústria, sendo ao mesmo tempo Seminário dos Artífices” (Carvalho, 20 set. 1776). Em outro ofício ao secretário de Estado Martinho de Melo e Castro, esclarece que o objetivo era criar “um estabelecimento regular, e permanente, que invejassem todos os índios silvestres, que de visita saíssem a povoado, servindo como de universidade aos que quisessem aldear-se” (Carvalho, 2 jan. 1779).

Figura 2
: Mapa modificado do original de provável autoria Ângelo Santos Cardoso (1753)CARDOSO, Ângelo dos Santos. Mapa geral da Capitania de Goiás. CARTm 008, D.867 (Arquivo Histórico Ultramarino, Lisboa). 1753.

Figura 3
: Planta modificada do aldeamento de São José de Mossâmedes, a partir do original datado de 1774 (Dias, 2017DIAS, Thiago C. O língua e as línguas: aldeamentos e mestiçagens entre manejos de mundo indígenas em Goiás. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2017., p.64)

Em 1780, período de ápice populacional, chegou a ter 814 Karajá e Javaé. O alferes Izidoro Roiz da Silva afirmou que havia 384 aprendendo ofícios mecânicos: oitenta “rapazes” na escola, setenta “raparigas” na costura, outras setenta na roda de fiar algodão, oito carpinteiros, quatro sapateiros, dois alfaiates, sete vaqueiros, oito tecelões de pano de algodão, seis carreiros, quatro pastores, dez telheiros, cem na lavoura, oito mulheres no engenho de fazer farinha de milho e mandioca. Nesse ano, a população indígena total do aldeamento era de Akroá (41 homens e 40 mulheres), Kayapó (11 homens e 12 mulheres), Xavante (4 homens e 2 mulheres), Karijó (14 homens e 22 mulheres), Karajá (213 homens e 121 mulheres) e Javaé (200 homens e 130 mulheres) (Menezes, mar. 1780). Nota-se que no aldeamento de Mossâmedes conviviam seis nações diferentes, com ao menos quatro línguas incompreensíveis entre si. A presença de culturas diferentes era então, de modo geral, uma característica presente nos aldeamentos, configurando-se como espaços de hibridização de culturas.

Um dos objetivos da política colonial portuguesa era eliminar o chamado gentilismo (sociocultura indígena), e o meio para tal partia da promoção da catequese e do trabalho, sendo as instituições responsáveis os aldeamentos. O resultado não esperado foi a mestiçagem dos saberes e fazeres indígenas com os dos colonizadores, tanto pelo lado dos indígenas quanto dos portugueses.

Essa política colonial se evidencia na estrutura e organização do aldeamento de São José de Mossâmedes. Era servido por um córrego desviado na Serra Dourada que recebia também águas do rio Fartura (Mattos, 1874MATTOS, Raymundo Cunha. Corografia histórica da província de Goiás. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, t.37, parte 1, p.213-394, 1874.), o qual cruzava a plantação de duas mil soqueiras de bananas, irrigava uma horta, servia os moradores e os animais de criação, mantinha o trabalho do moinho, do engenho de farinha de mandioca e milho e a casa de fiar (1780). Chama atenção a existência de uma casa especial, nesse córrego desviado, destinada à higiene, chamada de casa de banho – provavelmente pensada para as mulheres se banharem distantes do olhar dos homens (Dias, 2017DIAS, Thiago C. O língua e as línguas: aldeamentos e mestiçagens entre manejos de mundo indígenas em Goiás. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2017.).

Deveria haver duas escolas, cujas localizações apenas se intuem. Havia igreja, sacristia e casa de despejos, casas para os soldados e para o governador, 32 “quartéis” para moradias unifamiliares de indígenas, e também celeiro, fazenda de gado e curral. Esse gado era usado na alimentação, produção de couro e tração animal. Criavam-se cavalos, porcos, galinhas, patos e provavelmente cães para caça. Todos esses animais, com exceção dos patos (Cairina moschata momelanotus), oriundos da América do Norte, foram introduzidos pelos colonizadores. Eram cultivados, junto ao rio Fartura, milho, abóbora, feijão, amendoim, mamona e algodão (Dias, 2017DIAS, Thiago C. O língua e as línguas: aldeamentos e mestiçagens entre manejos de mundo indígenas em Goiás. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2017.). No mapa é possível visualizar essas construções.

O Diretório dos Índios (lei em vigor entre 1758 e 1798) estimulava a presença de brancos nos aldeamentos, mas qualquer morador de qualquer qualidade ou condição poderia residir “logrando todas as honras, e privilégios, que sua Majestade foi servido conceder aos moradores” (Furtado, 1757FURTADO, Francisco Xavier de Mendonça. Diretório, que se deve observar nas povoações das Índias do Pará, e Maranhão em quanto Sua Majestade não mandar o contrário. Lisboa: Oficina de Miguel Rodrigues, 1757., artigo 80). Havia também africanos, presença evidenciada pela existência de uma senzala com duas casas. Os governadores eram presentes em Mossâmedes. A mestiçagem, nos termos de hoje, era parte do projeto colonial de civilizar pelo trabalho e pela catequese, porém possuía um terceiro aspecto: a apropriação das drogas nativas de uso e conhecimento indígena a partir de preceitos da história natural.

Da extração ao cultivo

A compreensão do que era droga no período se aproxima da etimologia da palavra em holandês, isto é, “produto seco”, podendo significar alimento, tinta, medicina, veneno, cordoaria e deleite (Carneiro, 1999CARNEIRO, Henrique. As drogas no Brasil Colonial: o saber indígena e os naturalistas europeus. In: Simpósio Nacional da Anpuh, 20., 1999, Florianópolis. Atas... Florianópolis: Anpuh, 1999. p.1007-1016.). O Diretório dos Índios normatizou os aldeamentos como espaços de extração de drogas do sertão, levando ao interesse posterior no cultivo com fins comerciais de plantas nativas de uso indígena (Furtado, 1757FURTADO, Francisco Xavier de Mendonça. Diretório, que se deve observar nas povoações das Índias do Pará, e Maranhão em quanto Sua Majestade não mandar o contrário. Lisboa: Oficina de Miguel Rodrigues, 1757., artigo 36). O Diretório instruía a divisão do lucro da extração e do comércio das drogas. Indicava o que deveria ser dos índios, com a divisão obedecendo ao quanto haviam trabalhado, e só poderiam obter o lucro se terminassem as roças (artigo 49). O pagamento seria feito pelo tesoureiro-geral, que deveria fazê-lo com fazendas (tecidos). Logo, os aldeados não tinham acesso ao lucro de seu trabalho em moeda, e a argumentação era baseada em uma suposta incapacidade deles em lidar com dinheiro (artigo 58), um pressuposto colonial. Os índios principais, os capitães e os sargentos poderiam mandar de quatro a seis índios para extrair drogas do sertão para si (artigo 50), porém 1/3 dos aldeados deveria servir os moradores na extração de drogas do sertão ou nas plantações (artigo 63).

É possível identificar na capitania de Guayases a política organizada por governadores e oficiais de tropa com o objetivo de prospecção de drogas de uso indígena. Um primeiro indício é a fala do provedor da Fazenda Real e intendente do Ouro, Joaquim José Freire de Andrade, que no ano seguinte seria nomeado diretor-geral dos Índios (1775). Andrade (26 jul. 1774, p.154) elogiou a diligência enviada por Mossâmedes que desceu o rio Tocantins até Belém do Pará, comentando as facilidades da nova rota comercial e a utilidade para o Estado: “por aquele Rio se pode fazer a extração da courama, e drogas medicinais, de que tanto abunda o nosso sertão”. Outro indício vem da fala do alferes José Pinto da Fonseca, que comandou uma bandeira à ilha do Bananal (rio Araguaia) em 1775. Ele afirmou, em carta ao governador Mossâmedes sobre os Karajá e os Javaé, que seriam aldeados no ano seguinte no aldeamento de Nova Beira, que “estes índios dão a conhecer naquele continente muitas ervas medicinais, com que fazem curas, que parecem milagres” (Souza, [1777?], p.129). A extração de drogas de uso indígena no aldeamento de Mossâmedes é identificada na década de 1780, quando a política colonial passa a implementar conhecimentos da história natural na administração do reino. Essa presença pode ser identificada em uma carta do governador Luís da Cunha Meneses a seu irmão, Tristão da Cunha Meneses, que viria a ser o governador seguinte. A carta descreve práticas, costumes, crenças e rituais dos indígenas aldeados Iny (Karajá e Javaé) e Kayapó do Sul (Paraniá) (Aparício, 1998APARÍCIO, João Paulo da S. Governar no Brasil colonial: a administração de Luís da Cunha de Meneses nas capitanias de Goiás (1778-1783) e de Minas Gerais (1783-1788). Dissertação (Mestrado em História e Cultura do Brasil) – Universidade de Lisboa, Lisboa, 1998.). Ao que parece foi redigida para ser lida na Academia de Ciências de Lisboa, pois foi escrita seguindo a proposta metodológica chamada Breves instruções aos correspondentes da Academia das Ciências de Lisboa (1781).

As Breves instruções indicavam como coletar material para constituir um inventário sobre as possibilidades econômicas a serem exploradas nas possessões portuguesas. Os membros da academia objetivaram a coleta de animais, vegetais e minerais com o intuito de escrever um compêndio e formar um museu nacional, para com essa coleção fazer o “adiantamento das artes, comércio, manufaturas e todos os mais ramos da economia” (Breves instruções..., 1781, p.3). As Breves instruções apresentavam métodos de escolha, preparo e acondicionamento de espécimes animais, vegetais e minerais para envio a Portugal. Além da descrição da natureza, indicavam fazer exames “relativos ao moral dos povos”, o detalhamento partiria da “religião, política, economia, artes, tradições etc.” (p.44).

Fica evidente o interesse dos portugueses em adquirir drogas do sertão. É solicitado aos pesquisadores enviar esclarecimentos sobre as plantas, animais e minerais consumidos e utilizados pelos indígenas, seus artefatos e suas artes, entendidas nos Setecentos como formas de fazer. Quanto à agricultura, o interesse recaía nos “usos e defeitos de instrumentos de lavoura”, o que incluía o conhecimento acerca de plantas utilizadas para “sustento, vestido, remédios, tintas etc.”. Quanto aos animais, desejava-se saber “o modo de fazer as suas caças e pescas”, mas também “os animais que empregam no trabalho e em outros serviços domésticos”. Dos minerais, a investigação concernia a quais os indígenas extraiam da terra, seus usos “e o modo de os reduzir a esses mesmos usos”. O termo “reduzir” é recorrente na documentação e tem o sentido, no contexto analisado, de utilizar os nativos para promover as atividades que já fazem, contudo em benefício dos portugueses. Redução que era pretendida também em relação às técnicas e formas de fazer “a perfeição e imperfeição das artes, manufaturas, e de todo o gênero de indústria, e comércio que houver no país” (Breves instruções..., 1781, p.45).

Os governadores tinham acesso ao manejo de mundo indígena quando passavam dias no aldeamento de São José de Mossâmedes e Maria I, vizinhos à capital. Conversavam com seus oficiais e falavam com os índios principais e autoridades indígenas geralmente por intermédio do intérprete militar indígena. Em determinado momento, o governador Luís da Cunha de Meneses afirmou que os indígenas não conheciam ou experimentaram “os efeitos de umas tantas moléstias que nós sofremos”, por outro lado “as de que pela sua natureza são atacados lhe têm feito adquirir, por experiências ... um amplíssimo conhecimento de muitas virtuosíssimas ervas”. Mais à frente destacou a existência de uma erva utilizada pelos Iny (Karajá e Javaé), “uma batatinha chamada do Paraguaia e aqui na Nova Beira [ilha do Bananal], que usando-se dela, como do chá tem provado melhor do que a quina para as sezões [febres], mas este de que são muito perseguidos e de que se remedeiam facilmente com a referida batatinha” (citado em Aparício, 1998APARÍCIO, João Paulo da S. Governar no Brasil colonial: a administração de Luís da Cunha de Meneses nas capitanias de Goiás (1778-1783) e de Minas Gerais (1783-1788). Dissertação (Mestrado em História e Cultura do Brasil) – Universidade de Lisboa, Lisboa, 1998., p.371). Drogas como a batatinha descrita acima eram estratégicas para a expansão portuguesa em terras de doenças tropicais, lugar onde o corpo europeu possuía pouca resistência a patogênicos como dengue, febre amarela, malária, doença de Chagas e, provavelmente, leishmaniose (Diamond, 2013DIAMOND, Jared M. Armas, germes e aço: os destinos das sociedades. Rio de Janeiro: Record, 2013.).

Continuando a carta, o governador descreveu o uso do urucum (Bixa orellana) para pintura corporal: “para se preservarem das mordidelas dos mosquitos, das moscas e mais insetos que abundam às margens da maior parte dos rios onde habitam” (citado em Aparício, 1998APARÍCIO, João Paulo da S. Governar no Brasil colonial: a administração de Luís da Cunha de Meneses nas capitanias de Goiás (1778-1783) e de Minas Gerais (1783-1788). Dissertação (Mestrado em História e Cultura do Brasil) – Universidade de Lisboa, Lisboa, 1998., p.372). Sérgio Buarque de Holanda (1994)HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e fronteiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. chegou à mesma conclusão ao afirmar que a pintura de urucum e jenipapo (Genipa americana) era proteção contra mosquitos.

O uso do urucum, para o governador, tinha relação também com a capacidade de se locomover entre peçonhas e predadores: “o cheiro que deita a mesma fruta os livra de serem acometidos dos mais bichos, como são jacarés, sucuris e jiboias … se tem verificado, e se está verificando sempre na afoiteza com que eles andam dentro da água, por entre todos os referidos bichos, sem o menor receio” (citado em Aparício, 1998APARÍCIO, João Paulo da S. Governar no Brasil colonial: a administração de Luís da Cunha de Meneses nas capitanias de Goiás (1778-1783) e de Minas Gerais (1783-1788). Dissertação (Mestrado em História e Cultura do Brasil) – Universidade de Lisboa, Lisboa, 1998., p.170). Sérgio Buarque faz referência ao uso que os indígenas faziam tanto do urucum quanto do jenipapo nas caçadas, “pode ligar-se também à observação fácil de que determinadas cores exercem sobre os animais verdadeiro poder de atração ou repulsão. Vermelho atrai o veado, enquanto o preto para não espantar a caça, já o queixada fica furioso quando avista cores brilhantes” (Holanda, 1994HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e fronteiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1994., p.61).

Em ofício escrito pelo diretor-geral dos Índios, Ignácio Joaquim Leme (10 set. 1783), ao secretário de Estado Martinho de Melo e Castro, há descrição de experiências cientificamente conduzidas a partir da erva-andorinha (Euphorbia hyssopifolia) e do uso do fio de tucum (Bactris setosa) nos aldeamentos. Ele cita que o capitão João Goudieley afirmou ter utilizado a erva “repetidas vezes e experimentado este admirável efeito nos seus [escravos] domésticos”. Para testar a eficácia da erva, observou o uso para tratar olhos vazados e

comunicou ao Ajudante das Ordens José Pinto da Fonseca que para desenganar-se furou o olho de um pato, em fim de cinco dias trouxe-o são ao prezado General Exc. Luís da Cunha, sem mais lesão que um pequeno risco no olho de cesura. S. Exc. passou a segunda operação, furando ambos olhos ao pato, e repetindo-lhe a cura todos os dias, no fim de cinco se achou o pato completamente são, só com sinal de duas cesuras, por serem dois golpes, que lhe deram nos olhos (Leme, 10 set. 1783).

Comprovou-se que o olho do pato foi curado quando encontrou o caminho para o milho. Foi despachada remessa dessa erva para análise em Portugal e foi proposto enviar uma quantidade maior, além de sementes, “para V. Exc. mandar semear a fim de ver se produz na Europa” (Leme, 10 set. 1783). Nessa primeira leva foi enviada pouca quantidade, e, pelo fato de que chegaria seca, Ignácio Taques aconselhou: “considero que seu pó fará o mesmo efeito, posto que em triplicado tempo, e talvez destilada, pelo preceito da química, tenha o seu licor a mesma eficácia”. Em outro ofício, ele prometeu uma segunda remessa, e nessa iriam mudas, mas temia “que não sendo a planta regada na viagem do mar, infalivelmente seque” (Leme, 12 maio 1784).

As plantas de uso indígena eram comparadas com “similares” de uso europeu e descritas a partir das aplicações. Na Europa havia uma erva chamada andorinha (Chelidonium majus) cujo fim era semelhante; o Vocabulário português e latino de Bluteau (1712BLUTEAU, Raphael. Vocabulário português e latino: áulico, anatômico, arquitetônico… Coimbra: Colégio das Artes da Companhia de Jesus, 1712. 8v., p.270) assim a descrevia: “Andorinha. Erva assim chamada, porque se tem observado, que as Andorinhas as levam ao ninho, e se entende que com ela dão a vista aos seus filhos, que nascem cegos”.

A prática comum era nomear com o mesmo nome vulgar plantas diferentes, mas com similar qualidade em suas características de cura, alimentação, tintura, veneno e produção de artefatos. Na prática, o nome, mais do que a uma planta em particular, designava uma qualidade comum a espécies muitas vezes distintas. De maneira geral, a avaliação da planta era feita por indicativos como gosto, cheiro, comestibilidade, contorno e cores (Marques, 1999MARQUES, Vera Regina B. Natureza em boiões: medicinas e boticários no Brasil setecentista. São Paulo: Unicamp, 1999.). Os nomes utilizados iam desde termos genéricos como “batatinha chamada do Paraguaia” até os usuais na língua geral nheengatu, como urucum e jenipapo, ou na língua portuguesa, caso da planta andorinha. A inovação estava nas avaliações feitas a partir das ciências naturais.

Além da erva-andorinha, foi enviado do aldeamento de São José de Mossâmedes um novelo de fio de tucum e folhas dessa palmeira para Portugal. Fio que foi comparado ao linho em sua capacidade e em sua resistência à água, provavelmente com testes realizados no próprio aldeamento:

Este é o mais rijo que há com tanta sustância, que para suster avultado peso foi necessário um cabo de linho de cem polegadas de grosso, sendo de ... tucum bastará a grossura de dez polegadas. Conservam-se muito na água, circunstâncias por que me lembra que examinado, e a prova de seu vigor, será muito útil para amarrar. Em toda a América há abundância destas palmas, mas com tanta fertilidade no Pará, e Maranhão, que julgo bastarão estes dois Estados para prover de amarras as Naus de Sua Majestade (Leme, 12 maio 1784).

No aldeamento foram realizadas pesquisas cientificamente conduzidas por princípios das ciências naturais, com comparação e aferição da capacidade do fio de tucum, apontando conclusões práticas. No período, eram feitas experiências semelhantes para produzir cordas com cânhamo no Nordeste, arbusto jecum [tucum?] na Bahia e a guaxima de Santa Catarina. Os testes finais eram realizados na Fábrica de Cordoaria da Corte em Lisboa (Domingues, 2012DOMINGUES, Angela. Monarcas, ministros e cientistas: mecanismos de poder, governação e informação no Brasil Colonial. Lisboa: Cham, 2012.).

No governo de João Manuel de Meneses (1800MENESES, João Manoel de. Ofício do [governador e capitão-general de Goiás], D. João Manuel de Menezes, ao [secretário de Estado da Marinha e Ultramar], D. Rodrigo de Sousa Coutinho, remetendo sete caixotes... ACL CU 008, cx.41, D.2528 (Arquivo Histórico Ultramarino, Lisboa). 26 jul. 1800.-1804) foram enviados, a mando dele, “sete caixotes com os números e produtos da Natureza pertencentes aos Reinos Animal, Mineral e Vegetal”. Segundo Meneses (26 jul. 1800), o interesse era adquirir dos locais as “plantas e raízes medicinais ... as quais tenho notícia que produzem ainda melhor efeito neste País que as que nos vem de outros, especialmente a quina [Strychnos pseudoquina] e calumba [Simaba ferruginea A. St.-Hil] que obram maravilhosamente”.

Nesses caixotes havia, junto aos produtos naturais, uma descrição dos testes feitos, que levavam em conta aparência, gosto, cor, o cheiro e a cor quando queimam e qualidade dos extratos feitos. Dois desses caixotes continham “quina” [do cerrado], e na análise ficam evidenciadas a leitura e as referências a Linneu, quando afirmam que não se trata da quina peruana Chinchona officinalis encontrada em seus escritos. Em outro caixote havia um vaso com geleia feita de uma mistura de galinha, peru e “mão-de-vaca”, acrescida de sal de quina e formando um extrato. A conclusão é de que a quina encontrada se trata de outra planta diferente da peruana, mas com os mesmos efeitos. Segundo o documento, cura febres intermitentes e podres, trata a putrefação de humores e fecha úlceras na pele (Meneses, 26 jul. 1800).

Na análise, faz-se um comparativo entre as plantas encontradas na capitania e aquelas oriundas de localidades distintas mas que possuem o mesmo nome. É o caso de outra planta do cerrado conhecida como “Jalapa” (Mandevilla ilustris), que, após a descrição da aparência, se afirma que é diferente da que vem do México, mas, como esta, tem valor em seu efeito purgante. Outra é a chamada “contra cria”, ou seja, uma planta abortiva, mas dessa não é apresentada nenhuma experiência, apenas compara-se com as que vêm do México, do Peru e da ilha de São Vicente, afirmando que superavam os efeitos das outras (Meneses, 26 jul. 1800).

Foi enviada também uma planta originária do cerrado chamada genericamente de “calumba” (Simaba ferruginea), que segundo o parecer “é muito diferente da que vem da Ásia e que foi batizada de Calumba Goynense”, afirmando que “usam os seus habitantes em todas as febres malignas, nervosas e podres, de que resultam maravilhosos efeitos ... quando são mordidos de alguma cobra venenosa ralando uma porção, e, água morna, aplicando os resíduos dela em cima da picada”. Outra planta febrífuga enviada foi a cinco folhas, de que, como as outras, faziam “usos os habitantes do país”. A expressão “habitantes do Brasil” é indicação de que as plantas tinham origem do uso indígena; contudo, é provável que o conhecimento dos moradores coloniais também tenha sido prospectado. Por fim, em um dos caixotes havia uma porção de salitre retirado das salinas, assim como outro mineral chamado sal de Glauber (sulfato de sódio) (Meneses, 26 jul. 1800).

Outra pesquisa do manejo originário de mundo indígena foi a da batata cará. Evidenciou-se no ofício do cirurgião-mor José Manuel Antunes da Frota ao secretário de Estado visconde de Anadia que a pesquisa de plantas medicinais e alimentares era prioridade da Coroa. Segundo o cirurgião, a mando do governador João Manoel de Meneses, foi enviada uma coleção de produtos naturais para ser analisada em Portugal. Em um dos caixotes havia batata “que os naturais chamam de cará [provavelmente Dioscorea triloba]”, outro da farinha da mesma batata, que era indicada, segundo o especialista, para entrar na composição para a fabricação de bolachas “aplicáveis ao consumo de gente de mão” (Frota, 7 mar. 1802). No século XVI, Gabriel Soares de Sousa (1851SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado descritivo do Brasil em 1587. Rio de Janeiro: Tipografia Universal de Laemmert, 1851., p.171) já mencionava o conhecimento de batatas carás pelos indígenas da Bahia: “comem cozidos e assados, como os inhames, mas tem melhor sabor: os mais d’eles são brancos, outros roxos, outros brancos por dentro e roxos por fora junto à casca, que são os melhores, e de maior sabor; outros são todos negros”. Logo, havia uma grande variedade de espécimes chamados de batata cará no Brasil, provavelmente a maioria de origem americana.

O envio de quina também foi realizado pelo governador Francisco de Assis Mascarenhas. Dalisia Doles afirma que houve um carregamento enviado de Guayases para Belém via Araguaia-Tocantins em 1806. Uma tropa formada por cinco pedestres, 14 Xerente, 48 Kayapó e 27 remadores carregaram “1.640 arrobas, compunham-se de gêneros vários: açúcar, algodão, quina, fumo e outros artigos” (Doles, 1969DOLES, Dalisia. A ligação Centro-Norte pela via Araguaia-Tocantins no período colonial. In: Simpósio Nacional dos Professores Universitários de História, 5., 1969, Campinas. Anais... Campinas: Anpuh, 1969., p.257). A presença indígena se fazia em todo o processo de apropriação, desde o conhecimento envolvido na extração, no cultivo e no tratamento das plantas até o transporte.

Governadores em diferentes capitanias enviaram drogas a Portugal, às vezes junto com pareceres de médicos, físicos e práticos, para serem testadas no Hospital Real Militar de Lisboa, “sob a forma de xaropes, banhos, decocções, cozeduras ou emplastros” (Domingues, 2012DOMINGUES, Angela. Monarcas, ministros e cientistas: mecanismos de poder, governação e informação no Brasil Colonial. Lisboa: Cham, 2012., p.141), na Fábrica de Cordoaria da Corte quando destinados à produção de cordas, e no Arsenal Real do Exército para a produção de navios e obras arquitetônicas, enquanto as drogas destinadas à tinturaria eram encaminhadas ao Laboratório Químico do Jardim Botânico da Ajuda para testes (Domingues, 2012DOMINGUES, Angela. Monarcas, ministros e cientistas: mecanismos de poder, governação e informação no Brasil Colonial. Lisboa: Cham, 2012.). Esse processo de apropriação das drogas indígenas a partir de preceitos da história natural foi decorrente da reforma do sistema colonial e da publicação do “Diretório do índios”.

As premissas iluministas que fundamentaram o saber científico luso-brasileiro a partir de meados do século XVIII eram entremeadas por uma compreensão científica e filosófica pragmática sobre o estudo da natureza. A questão seria como dominar a natureza, como colocá-la a serviço do humano, entendendo-a como providência, fosse ela divina ou naturalizada, que, como criação de Deus, deteria as soluções para os problemas humanos, bastando à ciência expô-las (Kury, 2004KURY, Lorelay. Homens de ciência no Brasil: impérios coloniais e circulação de informações (1780-1810). História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v.11, supl.1, p.109-129, 2004., p.110).

O parâmetro da reforma do sistema colonial consistiu nas experiências de outras coroas, principalmente o “modelo hegemônico franco-inglês, no qual as práticas científicas passaram a fazer parte integrante da rotina administrativa dos impérios” (Kury, 2004KURY, Lorelay. Homens de ciência no Brasil: impérios coloniais e circulação de informações (1780-1810). História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v.11, supl.1, p.109-129, 2004., p.115). As instruções que o governador Mossâmedes recebeu em 1771 eram contundentes em afirmar que se deveriam seguir os métodos franceses e ingleses, considerados mais suaves e brandos que os portugueses e espanhóis. Ele elaborou a política quanto aos indígenas a partir de “livros, por onde estudassem na história da América Setentrional, os meios de que usaram os franceses e ingleses, e que nós devíamos ter adotado, e corregido pela prática” (Carvalho, 2 jan. 1779).

O governador Luís da Cunha Meneses deixou claras as leituras que fez para levar adiante o plano de ampliar o sistema de aldeamentos baseados nas experiências francesas e inglesas, mas sem descartar os esforços espanhóis e portugueses. Afirmou que teve conhecimento da expansão colonial portuguesa na África, na Ásia e na América pela leitura do padre Zafito, da Companhia de Jesus, e que teve contato com história da colonização da América Setentrional e a descrição “dos costumes dos habitantes de toda aquela parte do Canadá, por monsieur d’Bacquille de La Potheire”. Leu também a conquista do México e do Peru pelos espanhóis na “História dos Incas, por Marmontel”, assim como a “História Natural, Civil e Geográfica do Orinoco ... pelo padre José Gumilha [sic] da Companhia de Jesus ... o qual trata mais circunstanciadamente dos costumes das Nações ... que pouco diferem dos que se acham situados nesta parte” (citado em Aparício, 1998APARÍCIO, João Paulo da S. Governar no Brasil colonial: a administração de Luís da Cunha de Meneses nas capitanias de Goiás (1778-1783) e de Minas Gerais (1783-1788). Dissertação (Mestrado em História e Cultura do Brasil) – Universidade de Lisboa, Lisboa, 1998., p.365). Afirmou ter remetido esses livros ao seu irmão, o governador que o substituiria. E que ele deveria ler mais dois importantes: “viagens que fizeram Condamine e monsieur Bouguer pelos grandes rios Paraguaia, Prata e Amazonas; quando se retiraram das observações astronômicas que por ordem da Academia das Ciências de Paris, vieram fazer no grande vale d’Yaruque nas vizinhanças de Cuenca, na província de Quito, no ano de 1745” (citado em Aparício, 1998APARÍCIO, João Paulo da S. Governar no Brasil colonial: a administração de Luís da Cunha de Meneses nas capitanias de Goiás (1778-1783) e de Minas Gerais (1783-1788). Dissertação (Mestrado em História e Cultura do Brasil) – Universidade de Lisboa, Lisboa, 1998., p.376).

A aproximação das práticas administrativas francesas e inglesas no que diz respeito à administração do conhecimento foi feita “segundo uma lógica de redes tecidas em torno de centros de produção de saber e de elaboração e redistribuição de produtos científicos” (Kury, 2004KURY, Lorelay. Homens de ciência no Brasil: impérios coloniais e circulação de informações (1780-1810). História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v.11, supl.1, p.109-129, 2004., p.110). Na capitania de Guayases havia o interesse dos governadores que os aldeamentos cumprissem o papel de centro de pesquisa e produção, enquanto a redistribuição ficaria a cargo do jardim botânico fundado na capital.

A constituição da rede de jardins botânicos e o Jardim de Vila Boa de Guayases

O desejo de identificar e classificar plantas e aclimatá-las em jardins botânicos para estudos medicinais surgiu em Pisa (1543) e Pádua (1545). Desejava-se aprimorar os estudos feitos na Antiguidade grega por pensadores como Dioscórides, Teofrastos, Galeno e Plínio. Esse tipo de jardim se multiplicou pela Europa, em geral junto a universidades, como os “jardins italianos e ainda em Montepellier (1598), Oxford (1621) e Edinburgh (1670), ou como estabelecimentos reais, como foi o caso do Jardim Real de Plantas Medicinais em Paris (1640)” (Sanjad, 2001SANJAD, Nelson Rodrigues. Nos Jardins de São José: uma história do Jardim Botânico do Grão Pará, 1796-1873. Dissertação (Mestrado em Geociências) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2001., p.23). No império lusitano, os primeiros jardins botânicos eram particulares e surgiram no século XVI, Garcia d’Orta mantinha um em Goa, e o físico alemão Gabriel Grisley manteve um horto em Lisboa no fim do século XVII. Esses jardins surgiram diretamente ligados à filosofia física (medicina) e à teoria humoral.

No século XVIII, os jardins como espaço de pesquisa médica passaram a concorrer com a ideia de jardim como instituição de “coleção, conservação e distribuição de plantas desconhecidas pelos europeus” com objetivos alimentares, terapêuticos e de produção material (Sanjad, 2001SANJAD, Nelson Rodrigues. Nos Jardins de São José: uma história do Jardim Botânico do Grão Pará, 1796-1873. Dissertação (Mestrado em Geociências) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2001., p.26). As mudanças no sistema científico português tiveram como ponto de inflexão o ano de 1759, quando os jesuítas foram expulsos e houve o rompimento com as compreensões consolidadas por eles como a hipocrática, a galênica e a escolástica, havendo uma aproximação com as ideias das ciências físicas e naturais. Os jesuítas eram os professores da Universidade de Coimbra, formando os filósofos físicos e parte da elite aristocrática que assumia os cargos na Coroa.

Em decorrência de sua expulsão e como parte do esforço de aproximação aos ideais iluministas, a Coroa investiu em instituições científicas a partir de parâmetros das ciências físicas e naturais, como a fundação do Real Gabinete de História Natural e do Jardim Botânico da Ajuda (1768), a reforma da Universidade de Coimbra (1770-1777), que incluiu a fundação de um jardim botânico, e a criação da Academia de Ciências de Lisboa (1779) (Marques, 1999MARQUES, Vera Regina B. Natureza em boiões: medicinas e boticários no Brasil setecentista. São Paulo: Unicamp, 1999.). Os jardins em Portugal passaram a ter caráter científico e organizado, com análises a partir da teoria de Linneu e práticas educacionais. No Rio de Janeiro foi criada uma academia científica, na qual se encontrava um horto na década de 1770 (Marques, 2005MARQUES, Vera Regina B. Escola de homens de ciências: a Academia Científica do Rio de Janeiro, 1772-1779. Educar, v.21, n.25, p.39-57, 2005.). Houve também iniciativas particulares, como a de Antônio José de Araújo Braga, que organizaria um jardim em Barcelos na década de 1780, e a de Antônio José Landi, “que até a morte, em 1791, foi proprietário de um jardim botânico e de um zoológico em Belém” (Sanjad, 2001SANJAD, Nelson Rodrigues. Nos Jardins de São José: uma história do Jardim Botânico do Grão Pará, 1796-1873. Dissertação (Mestrado em Geociências) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2001., p.85).

Para suprir as demandas das instituições em Portugal, a Coroa contratou pesquisadores e professores de física, astronomia, química, matemática e história natural em Bolonha, Gênova e Pádua (Domingues, 2012DOMINGUES, Angela. Monarcas, ministros e cientistas: mecanismos de poder, governação e informação no Brasil Colonial. Lisboa: Cham, 2012.). O investimento no conhecimento da história natural tinha o fim de modernizar e diversificar as produções agrícolas, mas também de entreter e instruir a aristocracia com a exposição, em museus e jardins, da grandeza dos domínios ultramarinos (Raminelli, 2008RAMINELLI, Ronald. Viagens ultramarinas: monarcas, vassalos e governo a distância. São Paulo: Alameda, 2008.).

Domenico Vandelli (1735-1816) foi um dos estrangeiros contratados. Trabalhou no Real Gabinete de História Natural e no Jardim Botânico da Ajuda entre 1768 e 1810. Foi professor da Universidade de Coimbra nas cadeiras de química e história natural entre 1772 e 1791, sendo que seus alunos, na maioria brasileiros, eram enviados para preparação profissional como cientistas naturalistas do Jardim Botânico da Ajuda, para conduzirem missões ultramarinas de pesquisa de história natural (Brigola, 2009BRIGOLA, João. Coleccionismo no século XVIII: textos e documentos. Porto: Porto Editora, 2009.).

Ele participou da formação de uma rede de informação e pesquisa constituída por cientistas naturais, engenheiros, médicos, colonos e funcionários da Coroa. A rede de informação buscava reconhecer os limites físicos das possessões ultramarinas, suas potencialidades comerciais e renovar e ampliar o conhecimento português com a identificação e descrição do uso dos recursos pelas populações existentes. Fomentou-se a produção de corologias, mapas, crônicas e documentos oficiais com o objetivo de diversificar e ampliar a produção natural comercial portuguesa (Domingues, 2012DOMINGUES, Angela. Monarcas, ministros e cientistas: mecanismos de poder, governação e informação no Brasil Colonial. Lisboa: Cham, 2012.). Além dos propósitos comerciais, Vandelli propunha a elaboração de uma história natural das colônias. Para tanto, os naturalistas enviados além-mar deveriam, a partir da filosofia natural, descrever, desenhar, coletar, armazenar e enviar as plantas, animais e minerais encontrados (Pataca, 2016PATACA, Ermelinda Moutinho. Coleta, transporte e aclimatação de plantas no Império luso-brasileiro (1777-1822). Museologia e Interdisciplinaridade, v.9, n.5, p.88-108, 2016.).

Nas instruções escritas por Vandelli para a viagem filosófica organizada por Alexandre Ferreira, destaca-se a seguinte afirmação: “os índios, como são os mais inteligentes práticos daquele continente, são também os melhores mestres para nos ensinar os nomes das plantas e o seu uso, principalmente das que se pode extrair cores e das que servem nas doenças próprias da América onde eles morarem” (citado em Pataca, 2016PATACA, Ermelinda Moutinho. Coleta, transporte e aclimatação de plantas no Império luso-brasileiro (1777-1822). Museologia e Interdisciplinaridade, v.9, n.5, p.88-108, 2016., p.92).

Na memória escrita para a rainha Maria I, descreve o que seria a ciência da agricultura: “o conhecimento dos vegetais, da sua natureza, e do clima, e terreno que nascem” (Vandelli, 1788VANDELLI, Domenico. Memória sobre a utilidade dos jardins botânicos a respeito da agricultura e principalmente cultivação das charnecas. Coimbra: Real Oficina da Universidade, 1788., p.1). Para os saberes sobre as plantas haveria a botânica, cujo conhecimento adviria de “experiências e reflexões físicas” (Vandelli, 1788VANDELLI, Domenico. Memória sobre a utilidade dos jardins botânicos a respeito da agricultura e principalmente cultivação das charnecas. Coimbra: Real Oficina da Universidade, 1788., p.1), enquanto as compreensões sobre o clima e o terreno seriam pesquisadas nos jardins botânicos.

Esse processo de apropriação das plantas nativas de uso indígena era parte de um movimento maior de cosmopolitização das floras e faunas terrestres na América, cuja investigação – por séculos feita a partir das teorias humorais, tendo os jesuítas como principais pesquisadores em Portugal (Walker, 2009WALKER, Timothy. Acquisition and circulation of medical knowledge within the Early Modern Portuguese Colonial Empire. In: Bleichmar, Daniela et al. Science in the Spanish and Portuguese empires, 1500-1800. California: Stanford University Press, 2009.) – passou então a ser conduzida com base científica ilustrada, com a utilização de dois novos instrumentos de intercâmbio de espécies: o herbário e o jardim botânico colonial (Dean, 1991DEAN, Warren. A botânica e a política imperial: a introdução e a domesticação de plantas no Brasil. Estudos Históricos, v.4, n.8, p.216- 228, 1991.). Com o jardim botânico, “a possibilidade de gerar informações a respeito das novas plantas para acompanhar as transferências com técnicas culturais testadas aumentou consideravelmente a capacidade de disseminar estas informações entre fazendeiros potenciais” (p.220).

É de 1798 a lei para a criação de uma rede de jardins botânicos coloniais na América portuguesa, mantidos pela Coroa. Um plano que passou a ser efetivado com a construção do Jardim Botânico de Belém do Pará. Outras capitanias também receberam ordem semelhante, como a capitania de Guayases. O objetivo da instalação de jardins botânicos era “reunir as produções naturais da colônia e realizar ensaios para o cultivo em larga escala, bem como aclimatar espécies comercialmente interessantes provenientes de outras regiões” (Sanjad, 2001SANJAD, Nelson Rodrigues. Nos Jardins de São José: uma história do Jardim Botânico do Grão Pará, 1796-1873. Dissertação (Mestrado em Geociências) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2001., p.78). Buscava-se a diversificação agrícola nas possessões ultramarinas por meio da pesquisa de novas espécies nativas com fins comerciais e a introdução de espécies exóticas para produção local. Desejava-se também fornecer novas espécies para os jardins botânicos europeus, para fins científicos, de coleção e para o deleite da aristocracia.

O Jardim de Belém foi pensado como modelo para os outros e era central na organização de uma futura rede de jardins botânicos. Estava localizado no litoral da Amazônia, onde deveria servir de apoio para a coleta, domesticação e distribuição de plantas de interesse comercial provenientes de usos indígenas, assim como para a aclimatação de plantas exóticas. Além desses propósitos, havia outro: servir de “ponto de apoio para a introdução em terras portuguesas de espécies contrabandeadas da Guiana Francesa, principalmente de La Gabriele [jardim botânico]” (Sanjad, 2001SANJAD, Nelson Rodrigues. Nos Jardins de São José: uma história do Jardim Botânico do Grão Pará, 1796-1873. Dissertação (Mestrado em Geociências) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2001., p.61). O apogeu desse contrabando ocorreu com a invasão da Guiana Francesa por tropas do Grão-Pará e de Pernambuco em 1809, domínio marcado pelo envio de plantas coletadas pelos franceses para as possessões portuguesas na América, que perdurou até 1817 (Sanjad, 2001SANJAD, Nelson Rodrigues. Nos Jardins de São José: uma história do Jardim Botânico do Grão Pará, 1796-1873. Dissertação (Mestrado em Geociências) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2001.).

O governador do Grão-Pará e Maranhão, Francisco Maurício de Sousa Coutinho, foi um dos principais idealizadores do sistema de jardins botânicos. Foi quem construiu o primeiro, respondendo a uma carta régia de 1796. Mandou erguer os viveiros do horto em Belém para aclimatação de plantas exóticas, para que, segundo suas palavras, “ao mesmo tempo se promova as indígenas que se não cultivam ainda e cujos produtos se vão avulsamente procurar pelos matos” (citado em Sanjad, 2001SANJAD, Nelson Rodrigues. Nos Jardins de São José: uma história do Jardim Botânico do Grão Pará, 1796-1873. Dissertação (Mestrado em Geociências) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2001., p.78). Como dito pelo governador ao seu irmão e secretário da Marinha e dos Domínios Ultramarinos, Rodrigo de Souza Coutinho (1796-1801), “espera que V.S. faça que esse Jardim sirva de modelo a todos os outros, que se devem estabelecer nas outras capitanias do Brasil, e que lhe dê uma tão extensão, que do mesmo possam ir para as outras capitanias, as plantas exóticas e indígenas, que V.S. tem cultivado” (citado em Sanjad, 2001SANJAD, Nelson Rodrigues. Nos Jardins de São José: uma história do Jardim Botânico do Grão Pará, 1796-1873. Dissertação (Mestrado em Geociências) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2001., p.79). O jardim de Belém do Pará serviria, no início, como matriz, uma primeira aclimatação, e alimentaria com sementes e mudas os hortos de outras capitanias, o que de fato ocorreu.

O secretário Rodrigo de Souza Coutinho “fez chegar a São Paulo, Salvador, Goiás, Olinda, São Luís e Vila Rica cartas ordenando a instalação de jardins semelhantes ao do Pará” (Sanjad, 2001SANJAD, Nelson Rodrigues. Nos Jardins de São José: uma história do Jardim Botânico do Grão Pará, 1796-1873. Dissertação (Mestrado em Geociências) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2001., p.84). Esses “Avisos” foram acompanhados por cópias de catálogos de plantas do horto paraense. O conhecimento das plantas existentes nesse horto possibilitaria aos governadores solicitar os excedentes. Mesmo sem um horto construído em suas capitanias, alguns governadores solicitaram plantas. A rede de jardins botânicos foi concebida para fazer circular espécies vegetais não só dentro da América portuguesa, ou entre ela e o reino, mas nas possessões no continente africano (Sanjad, 2001SANJAD, Nelson Rodrigues. Nos Jardins de São José: uma história do Jardim Botânico do Grão Pará, 1796-1873. Dissertação (Mestrado em Geociências) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2001.).

O responsável pela construção do jardim botânico em Guayases foi o governador João Manuel de Meneses (1800MENESES, João Manoel de. Ofício do [governador e capitão-general de Goiás], D. João Manuel de Menezes, ao [secretário de Estado da Marinha e Ultramar], D. Rodrigo de Sousa Coutinho, remetendo sete caixotes... ACL CU 008, cx.41, D.2528 (Arquivo Histórico Ultramarino, Lisboa). 26 jul. 1800.-1804). O adoentado governador trouxe consigo o cirurgião-mor José Manoel A. da Frota, que o assistiu na viagem pelos rios até Vila Boa, e que assumiria outras funções no governo, como efetivar o plano que compreendia a exploração de salitre das salinas e a construção de um jardim botânico, para o qual deveria realizar a “colheita das sementes de todas árvores e plantas e ... das indagações dos produtos naturais” (Marinho, 7 maio 1804).

Em ofício do governador ao secretário de Estado visconde de Anadia está detalhado que o jardim teve origem na propriedade de José Francisco Hutim, escolhida por ter “comodidade e terreno ... para estabelecimento do Horto Botânico” na capital. Para estabelecimento do horto deveria ser feita “a arrematação das referidas casas e chácaras para se entrar o semear e plantar seguindo o Plano que se dispõem no Real Aviso” (Meneses, 4 abr. 1803). Não se tem certeza se o horto foi iniciado em 1801, como ordenado, mas se sabe que em 1803 tinha “muitas plantas, as quais dependem de cuidado para serem conservadas”. Nelson Sanjad (2001SANJAD, Nelson Rodrigues. Nos Jardins de São José: uma história do Jardim Botânico do Grão Pará, 1796-1873. Dissertação (Mestrado em Geociências) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2001., p.86) defende que o jardim botânico de “Goiás, instalado em 1801, parece não ter prosperado e os de São Paulo, Ouro Preto, São Luís e Salvador só foram implantados depois da Independência”.

Junto ao horto ficaria uma plantação de café cuja produção seria destinada ao comércio em Belém do Pará. A chácara de café era de Manoel José Leite e era limítrofe à chácara de José Francisco Hutim. O governador expressou que o mandou “cuidar em uma chácara ... de que fazendo nela uma boa plantação de café, vai depois transportado para a cidade do Pará, ajudaria em muito para ... despesa do dito Horto” (Meneses, 4 abr. 1803). A dificuldade quanto à constituição do horto era convencer a Junta da Real Fazenda de que as ordens partiam da Coroa e que ela deveria liberar ouro para sua execução.

Segundo o governador João Manuel de Meneses, o referido plano “foi julgado nesta capital como uma heresia, combatido pelos deputados da Junta da Real Fazenda como uma despesa supérflua” (Meneses, 4 abr. 1803), oposição em que se destacou o intendente do ouro, Manoel Souto Coelho. Havia descontentamento declarado em relação à governança de João Manoel Meneses por um grupo de “homens bons” locais. A arrematação foi feita pela quantia de 1.319 oitavas de ouro (4,73kg), o que aparentemente não foi pago, pois a junta que comandava a Fazenda Real da capitania alegava desconhecimento do aviso de 1798, ato em oposição ao governador João Manuel de Meneses. O governador, na tentativa de comprovar a ordem do rei para construção do horto, apresentou aos deputados da Junta da Fazenda Real o aviso de 19 de dezembro de 1798, cujo conteúdo segue:

tem o Governador e Capitão General da Capitania do Pará formado naquela Cidade um Horto Botânico, em que já se achavam as plantas, que constam do catálogo incluso, e que é de esperar que ele vai aumentando gradualmente. Mas ainda Sua Majestade recomendar a Vossa Senhoria que procure estabelecer nessa Capitania com menor despesa que for possível um Jardim Botânico semelhante do Pará, em que se cultivem todas as plantas, ‘assim indígenas’, como aplicar e em que particularmente se cuide em [inelegível] de semente as Árvores que dão Madeiras de construção, para depois a semearem nas Matas Reais (Meneses, 4 abr. 1803; destaque nosso).

O governador João Manuel de Meneses acusou o intendente do Ouro e procurador da Fazenda, Manoel Souto Coelho, de ser o principal adversário dos gastos propostos com o horto, ao qual classificava como uma horta de “couves e alfaces”. O intendente do Ouro era quem liberava o ouro da Fazenda Real para atender às demandas da governança. Em carta ao Conselho Ultramarino, apontava os altos gastos com o aldeamento São José de Mossâmedes e com o horto como razão da derrocada da Fazenda Real:

Chácara de José Francisco Hutim que tomou despoticamente para o Horto Botânico, até sem ouvir a do Dono por estar preso, fazendo extraordinárias despesas [mil cruzados = 2,24kg de ouro quintado] em muros novos, e escravos rematados a Devedores da Fazenda, e isto sem exame das capacidades, e fertilidades do terreno para as plantas de café, o que se comprova por estarem todas reduzidas a secas, com as da Chácara de Manoel José Leite, ou do terreno por ser abundante de formigas é incapaz de produção alguma; porém neste mesmo terreno tem mandado fazer as algumas casas, e hortas, do que se aproveitou algum dos seus comensais (Marinho, 7 maio 1804).

Um documento de junho de 1804 por fim indica que os terrenos da horta foram colocados à venda e no preço deveriam ser consideradas as despesas das benfeitorias e plantações. Caso não fosse vendido, seria arrendado, e o arrendatário deveria “conservar em algum sítio destes terrenos as plantações das árvores, e mais plantas, recomendadas no Aviso [1798]” (Souza, 21 jun. 1804). O motivo da venda seria o gasto e a má qualidade do terreno.

Considerações finais

É fato reconhecido pela historiografia o ímpeto da administração da América portuguesa em inventariar, apropriar e tornar comercialmente viáveis as produções naturais investigadas a partir do trabalho de funcionários com conhecimentos em história natural. Funcionários que tinham nos indígenas os principais informantes sobre novas espécies e seus usos. Logo, o estudo da contribuição indígena referente ao conhecimento de espécies botânicas faz jus a esses sujeitos sociais que com suas culturas, experiências, saberes e práticas constituíram um conhecimento milenar e ancestral sobre o mundo natural. Conhecimento que devidamente reconhecido dá protagonismo aos indígenas na constituição do conhecimento científico ocidental.

Quanto ao império ultramarino português, são válidas as conclusões de Warren Dean reafirmadas por Kury (2004)KURY, Lorelay. Homens de ciência no Brasil: impérios coloniais e circulação de informações (1780-1810). História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v.11, supl.1, p.109-129, 2004. de que o esforço da Coroa para substituir a renda do ouro pela renda oriunda de uma agricultura diversificada e racionalizada nos moldes das nascentes ciências naturais não teve êxito em transformar o modelo econômico monocultor. A concorrência de outras coroas e a invasão francesa de Portugal desestruturaram o sistema colonial, além de a produção de café se transformar na principal fonte de renda nos setores rurais. Na capitania, a desejada substituição da renda do ouro por uma advinda de uma agricultura variada, baseada na mão de obra indígena, também não teve o êxito projetado. O comércio de novas plantas nativas e a aclimatação de outras exógenas demandava, além do interesse econômico e político, a capacidade técnica sobre extração e cultivo, controle de rotas comerciais, a existência de mercado consumidor e uma política contínua de incentivo, fatores que não se consolidaram na capitania.

AGRADECIMENTOS

Agradecemos à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), o apoio financeiro em forma de bolsa de doutorado (processo n.1224367) e de doutorado sanduíche (PDSE 99999.003297/2015-02) oferecidas ao pesquisador Thiago Cancelier Dias entre 2013 e 2017, o que possibilitou a dedicação exclusiva à pesquisa, o diálogo com pesquisadores e a localização de documentos históricos em arquivos brasileiros e portugueses. Somos gratos, também, aos pareceristas e à equipe envolvida, pelas contribuições.

REFERÊNCIAS

  • AGUIAR, José Otávio. A botânica como missão pedagógica: Manuel Arruda da Câmara e a peculiaridade de suas interpretações sobre as espécies brasileiras (1752-1811). Clio, v.29, n.1, p.180-205, 2011.
  • ANDRADE, Joaquim J.F. de. Falas ao general em congresso festivo… In: Souza, Thomaz de. Coleção de notícias da capitania de Goiás Loc. 07, 4, 070, p.154 (Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro). 26 jul. 1774.
  • APARÍCIO, João Paulo da S. Governar no Brasil colonial: a administração de Luís da Cunha de Meneses nas capitanias de Goiás (1778-1783) e de Minas Gerais (1783-1788) Dissertação (Mestrado em História e Cultura do Brasil) – Universidade de Lisboa, Lisboa, 1998.
  • APOLINÁRIO, Juciene. Plantas nativas, indígenas coloniais: usos e apropriações da flora da América portuguesa. In: Kury, Lorelai (org.). Usos e circulação de plantas no Brasil: séculos XVI a XIX Rio de Janeiro: Andrea Jakobsson, 2013. p.181-227.
  • BLUTEAU, Raphael. Vocabulário português e latino: áulico, anatômico, arquitetônico… Coimbra: Colégio das Artes da Companhia de Jesus, 1712. 8v.
  • BOAVENTURA, Deusa Maria. Urbanização em Goiás no século XVIII. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.
  • BREVES INSTRUÇÕES aos correspondentes da Academia das Ciências de Lisboa sobre as remessas dos produtos e notícias pertencentes à história da natureza para formar um museu nacional. Lisboa: Régia Oficina Tipográfica, 1781. Disponível em: <http://purl.pt/720>. Acesso em: 20 jan. 2015.
    » http://purl.pt/720>
  • BRIGOLA, João. Coleccionismo no século XVIII: textos e documentos Porto: Porto Editora, 2009.
  • CARDOSO, Ângelo dos Santos. Mapa geral da Capitania de Goiás CARTm 008, D.867 (Arquivo Histórico Ultramarino, Lisboa). 1753.
  • CARNEIRO, Henrique. As drogas no Brasil Colonial: o saber indígena e os naturalistas europeus. In: Simpósio Nacional da Anpuh, 20., 1999, Florianópolis. Atas... Florianópolis: Anpuh, 1999. p.1007-1016.
  • CARVALHO, José de A.V. de Soveral e. Ofício do ex-governador de Goiás, [barão de Mossâmedes], José de Almeida Vasconcelos de [Soveral e Carvalho], ao [secretário de estado da Marinha e Ultramar], Martinho de Melo e Castro... ACL CU 008, cx.31, D.1959 (Arquivo Histórico Ultramarino, Lisboa). 2 jan. 1779.
  • CARVALHO, José de A.V. de Soveral e. Ao mesmo Ex.mo Sr., dando S. Ex.a conta da construção do Edifício da Aldeia de São José de Mossâmedes. Livro de Ofícios dirigidos a Corte de Lisboa... [1771-1777]. AHU_ACL_CU - Cod. 1655, p.70v-71. (Arquivo Histórico Ultramarino, Lisboa). 20 set. 1776.
  • COSTA, Palmira F. da; LEITÃO, Henrique.Portuguese imperial science: a historiographical review. In: Bleichmar, Daniela; De Vos, Paula; Huffine, Kristin (coord.). Science, power and the order of nature in the Spanish and Portuguese empires Stanford: Stanford University Press, 2008. p.35-52.
  • DEAN, Warren. A botânica e a política imperial: a introdução e a domesticação de plantas no Brasil. Estudos Históricos, v.4, n.8, p.216- 228, 1991.
  • DIAMOND, Jared M. Armas, germes e aço: os destinos das sociedades Rio de Janeiro: Record, 2013.
  • DIAS, Thiago C. O língua e as línguas: aldeamentos e mestiçagens entre manejos de mundo indígenas em Goiás Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2017.
  • DOLES, Dalisia. A ligação Centro-Norte pela via Araguaia-Tocantins no período colonial. In: Simpósio Nacional dos Professores Universitários de História, 5., 1969, Campinas. Anais... Campinas: Anpuh, 1969.
  • DOMINGUES, Angela. Monarcas, ministros e cientistas: mecanismos de poder, governação e informação no Brasil Colonial Lisboa: Cham, 2012.
  • FROTA, José M.A. da. Ofício do... ACL CU 008, cx. 44, D. 2606 (Arquivo Histórico Ultramarino, Lisboa). 7 mar. 1802.
  • FURTADO, Francisco Xavier de Mendonça. Diretório, que se deve observar nas povoações das Índias do Pará, e Maranhão em quanto Sua Majestade não mandar o contrário Lisboa: Oficina de Miguel Rodrigues, 1757.
  • GRUZINSKI, Serge. O pensamento mestiço São Paulo: Companhia das Letras, 2001
  • HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e fronteiras São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
  • KARASCH, Mary. Catequese e cativeiro: política indigenista em Goiás, 1780-1889. In: Cunha, Manuela Carneiro (org.). História dos índios do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p.397-412.
  • KURY, Lorelay. Homens de ciência no Brasil: impérios coloniais e circulação de informações (1780-1810). História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v.11, supl.1, p.109-129, 2004.
  • LEME, Inácio J.T. de A. Pais. Ofício de Inácio Joaquim Taques de Almeida Pais Leme, ao [secretário de Estado da Marinha e Ultramar], Martinho de Melo e Castro, sobre ter remetido a “erva de andorinha”... ACL CU 008, cx.35, D.2142 (Arquivo Histórico Ultramarino, Lisboa). 12 maio 1784.
  • LEME, Inácio J.T. de A. Pais. Ofício de Inácio Joaquim Taques de Almeida Pais Leme, ao [secretário de Estado da Marinha e Ultramar], Martinho de Melo e Castro, remetendo os seguintes produtos para a corte... ACL CU 008, cx.34, D.2121 (Arquivo Histórico Ultramarino, Lisboa). 10 set. 1783.
  • LEMES, Fernando Lobo. Espera, morte e incerteza: a instalação dos julgados nas minas de Goiás: leituras sobre a criação de Vila Boa. História Revista, v.17, n.2, p.189-213, 2012a.
  • LEMES, Fernando Lobo. Os tempos da história: ritmo, temporalidade e projetos coloniais nas minas de Goiás. Dimensões, v.28, n.1, p.247-269, 2012b.
  • MARINHO, José J.P. Ofício do contador-geral, José Joaquim Pereira Marinho, ao [secretário de Estado da Fazenda Real e presidente do Erário Régio, D. Rodrigo de Sousa Coutinho], sobre a carta do ex-intendente do Ouro da Casa de Fundição de Vila Boa... ACL CU 008, cx.47, D.2720 (Arquivo Histórico Ultramarino, Lisboa). 7 maio 1804.
  • MARQUES, Vera Regina B. Escola de homens de ciências: a Academia Científica do Rio de Janeiro, 1772-1779. Educar, v.21, n.25, p.39-57, 2005.
  • MARQUES, Vera Regina B. Natureza em boiões: medicinas e boticários no Brasil setecentista. São Paulo: Unicamp, 1999.
  • MATTOS, Raymundo Cunha. Corografia histórica da província de Goiás. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, t.37, parte 1, p.213-394, 1874.
  • MENESES, João Manoel de. Ofício do [governador e capitão-general de Goiás], D. João Manuel de Menezes, ao [secretário de Estado da Marinha e Ultramar], visconde de Anadia [João Rodrigues de Sá e Melo], sobre a arrematação das casas do ex-tesoureiro, Francisco José Hutim... ACL CU 008, cx.45, D.2659 (Arquivo Histórico Ultramarino, Lisboa). 4 abr. 1803.
  • MENESES, João Manoel de. Ofício do [governador e capitão-general de Goiás], D. João Manuel de Menezes, ao [secretário de Estado da Marinha e Ultramar], D. Rodrigo de Sousa Coutinho, remetendo sete caixotes... ACL CU 008, cx.41, D.2528 (Arquivo Histórico Ultramarino, Lisboa). 26 jul. 1800.
  • MENESES, Luís da Cunha. Ofício do [governador e capitão-general de Goiás], Luís da Cunha Meneses, ao [secretário de estado da Marinha e Ultramar], Martinho de Melo e Castro, sobre o aldeamento da Nova Beira... ACL CU 008, cx.32, D.1996 (Arquivo Histórico Ultramarino, Lisboa). mar. 1780.
  • MORAES, Cristina de C.P. Em terra de cego, caolho tem vida de rei: as migrações no setecentos para o sertão dos Guayazes. Revista UFG, ano 13, n.10, p.68-92, 2011.
  • PATACA, Ermelinda Moutinho. Coleta, transporte e aclimatação de plantas no Império luso-brasileiro (1777-1822). Museologia e Interdisciplinaridade, v.9, n.5, p.88-108, 2016.
  • PEREIRA, Rodrigo Osório. O império botânico: as políticas portuguesas para a flora da Bahia atlântica colonial (1768-1808). Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2013.
  • PERRONE-MOISÉS, Beatriz. Índios livres e índios escravos: os princípios da legislação indigenista do período colonial (sécs. XVI a XVIII). In: Cunha, Manuela Carneiro da (org.). História dos índios no Brasil São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p.115-132.
  • PESTRE, Dominique. Por uma nova história social e cultural das ciências: novas definições, novos objetos, novas abordagens. Cadernos IG-Unicamp, v.6, n.1, p.3-56, 1996.
  • RAMINELLI, Ronald. Ilustração e império colonial. História, v.31, n.2, p.36-67, 2012.
  • RAMINELLI, Ronald. Viagens ultramarinas: monarcas, vassalos e governo a distância. São Paulo: Alameda, 2008.
  • ROCHA, Leandro Mendes; MORAES, Cristina de Cassia Pereira (org.). Atlas histórico: Goiás pré-colonial e colonial Goiânia: Editora do Cecab. 2001.
  • SANJAD, Nelson. Ciência e poder imperial no Grão-Pará: da expansão à desconstrução. In: Kury, Lorelai; Gesteira, Heloisa (org.). Ensaios de história das ciências no Brasil Rio de Janeiro: Eduerj, 2012. p.225-238.
  • SANJAD, Nelson Rodrigues. Nos Jardins de São José: uma história do Jardim Botânico do Grão Pará, 1796-1873 Dissertação (Mestrado em Geociências) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2001.
  • SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula G.; NUNES, João Arriscado. Para ampliar o cânone da ciência: a diversidade epistemológica do mundo. In: Santos, Boaventura de Souza (org.). Semear outras soluções: os caminhos da biodiversidade e dos conhecimentos rivais Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
  • SEVCENKO, Nicolau. O front brasileiro na guerra verde: colonialismo e cultura. Revista USP, n.30, p.108-119, jun.-ago. 1996.
  • SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado descritivo do Brasil em 1587. Rio de Janeiro: Tipografia Universal de Laemmert, 1851.
  • SOUZA, Luis de Vasconcelos e. Arrendamento do horto botânico. Documentos avulsos, fl.124 (Museu das Bandeiras, Cidade de Goiás). 21 jun. 1804.
  • SOUZA, Thomaz de. Resumo de mais duas cartas particulares do alferes de dragões comandante da conquista da ilha Nova Beira, datadas na capital de Goiás a 22 de Novembro, e 18 de setembro de 1775. In: Souza, Thomaz de. Coleção de notícias da Capitania de Goiás... (1772-1777) Vila Boa de Goiás: [s.n.]. p.127-133. Loc. 07, 4, 070 (Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro). [1777?]
  • TAUNAY, Affonso de E. Um grande bandeirante: Bartholomeu Paes de Abreu (1674-1738) São Paulo: Oficinas do Diário Oficial, 1923.
  • VANDELLI, Domenico. Memória sobre a utilidade dos jardins botânicos a respeito da agricultura e principalmente cultivação das charnecas. Coimbra: Real Oficina da Universidade, 1788.
  • VARELA, Alex. As viagens científicas realizadas pelo naturalista Martim Francisco Ribeiro de Andrada na capitania de São Paulo (1800-1805). Topoi, v.8, n.14, p.172-205, 2007.
  • VIDAL, Laurent. Sob a máscara do colonial: nascimento e ‘decadência’ de uma vila no Brasil moderno: Vila Boa de Goiás no século XVIII. História, v.28, n.1, p.243-288, 2009.
  • WALKER, Timothy. Acquisition and circulation of medical knowledge within the Early Modern Portuguese Colonial Empire. In: Bleichmar, Daniela et al. Science in the Spanish and Portuguese empires, 1500-1800 California: Stanford University Press, 2009.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Mar 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2021

Histórico

  • Recebido
    25 Jun 2019
  • Aceito
    8 Jan 2020
Casa de Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz Av. Brasil, 4365, 21040-900 , Tel: +55 (21) 3865-2208/2195/2196 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: hscience@fiocruz.br